segunda-feira, 19 de julho de 2010

Homens continuam a matar as mulheres. Porquê?

Foi uma semana sangrenta. Três mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros ou já ex-companheiros. Morreram com tiros disparados e com facas cravadas por homens que um dia amaram.
Duas das vítimas tinham já reunido coragem para apresentar queixa à Polícia. O filho de outra das vítimas foi quem foi à esquadra pela mãe. São casos sinalizados junto das autoridades e, ainda assim, com final trágico. Porquê?
Investigadores do fenómeno da violência doméstica apontam vários factores de risco. Terá a crise financeira relação com as agressões? Terão as mulheres cedido, por amor, a mais um pedido de perdão sem saber que, desta vez, o amor vinha com uma arma carregada e pronta a disparar? Poderá uma mulher escapar a uma educação que a prepara para casar e nunca para o cultivo da sua autonomia? Será possível a uma mulher - pobre ou rica, empregada de mesa ou directora de uma empresa - escapar à teia que, ao longo de anos, o homem construiu, isolando-a de amigos, castrando a forma de vestir, simulando ciúme, diminuindo, ardilosamente, a sua auto-estima?
Os estudos indicam que mulheres de personalidade dependente ou com histórico de maus tratos integram, habitualmente, o perfil da vítima. Mas a verdade é que qualquer mulher pode ver-se presa num casulo de manipulação sedutora, independentemente da sua condição socio-económica, e descobrir que, para escapar, a sua vida fica em perigo.
Em 2009, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) ultrapassou os dez mil processos de apoio, mais 1,3% face a 2008. Foram registados 17.628 crimes, repartidos por cinco diferentes categorias criminais. Mais de seis mil mulheres foram vítimas de crime. Cerca de 127 por semana. Quase 18 por dia. Porquê?
Mulheres de classe social mais alta em desvantagem
Ana, Laura, Linda e Sara são nomes reais de mulheres assassinadas, no ano passado, por homens com quem tiveram uma relação amorosa. À medida que investigam o fenómeno, organizações movem-se no terreno para evitar que as Anas e as Saras que conhecemos não terminem numa chocante folha de papel como vítimas mortais de violência doméstica. Para que não terminem como a dor imparável no coração de um filho, de um irmão, de um pai.
"Sinto que os efeitos da crise económica e financeira também se estão a reflectir no aumento do fenómeno da violência contra as mulheres", declarou, esta semana, o deputado social-democrata Mendes Bota, à Lusa. O coordenador da campanha contra a violência doméstica da Assembleia da República defende que "a mulher é o elo mais fraco" para descarregar as "frustrações do desemprego, da falta de bens essenciais em casa e na família". Nesse sentido, Mendes Bota, que também preside à Comissão para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens do Conselho Europeu, apela às autoridades para estarem atentas este tipo de crimes.
Há mais queixas, com ou sem crise
Na perspectiva de Maria Rodrigues Vacas, da APAV, "não se pode estabelecer uma correlação entre a crise social e financeira e a violência doméstica". É possível, isso sim, reconhecer factores de risco que se aplicam a determinadas pessoas, mas não a outras.
Há agressões desencadeadas pela instabilidade económica, pela perda de qualidade de vida. Mas há violência motivada por um historial de maus tratos, por consumo de substâncias, por famílias destruídas, entre outros factores de risco.
No mesmo sentido, a investigadora da Universidade do Porto Maria José Magalhães declara que "tudo indica que não há relação entre a crise e a violência doméstica" e aponta diversos motivos para sustentar a sua afirmação. No que diz respeito às taxas de queixas apresentadas à polícia pelas vítimas, a docente explica que tem sido verificada uma progressão anual entre 10% e 11%, "independentemente da crise ou não".
O fenómeno do aumento de queixas encontra explicação no "aumento das campanhas de prevenção, das respostas sociais às mulheres e dos mecanismos de bloqueio do agressor, defende Maria José Magalhães, também directora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
Aliás, estando a investigar este tipo particular de violência desde a década de 80 e recorrendo a estudos feitos a partir dos anos 60, a autora do livro Gostar de mim, gostar de ti - aprender a prevenir a violência de género recorda que, "antigamente, a mulher que era agredida pelo marido ia ao psiquiatra. Depois o médico chamava o agressor e tentava uma reconciliação". Hoje, não funciona assim.
A realidade mudou e a lei, que tornou o fenómeno num crime público, também. "A actual é boa, mas falta ainda regulamentar muitos aspectos", defende, por sua vez, a técnica da APAV. O apoio ao arrendamento dado às vítimas, por exemplo, "não é claro, porque, na prática, não se sabe quem o dá". E quanto às medidas de afastamento dos agressores, "ainda não há grande aplicabilidade".
A investigadora da Universidade do Porto lembra o caso de uma mulher, assassinada pelo marido no final do ano passado. "Ela apresentou queixa à PSP que, por sua vez, a acompanhou ao Ministério Público para exigir o afastamento do agressor. Mas a Procuradora entendeu que não havia grande perigo e não emitiu a ordem, acabando até por desautorizar a Polícia. Essa mulher morreu pouco tempo depois". Tinha 34 anos.
Advogados caros e detectives privados
Para Maria José Magalhães, associar a crise à violência doméstica, mais do que incorrecto, é "perigoso: desprotege as mulheres mais pobres e considera que as vítimas de violência de classes socio-económicas mais favorecidas só podem ser masoquistas".
A docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação alerta para o facto de muitas das vítimas serem empresárias, advogadas, médicas, professoras, catedráticas e defende que a condição social mais elevada não constitui uma vantagem nestes casos.
Pelo contrário: "Sentem mais vergonha, maior incompreensão social. Normalmente são casadas com homens, também financeiramente favorecidos, que pagam um advogado a peso de ouro e são absolvidos em tribunal. Encontram-nas em qualquer lugar, porque contratam um detective privado".
Quando as mulheres são forçadas a recomeçar uma nova vida, noutro lugar, com outra identidade, também as vítimas mais favorecidas socialmente são as que mais obstáculos encontram, segundo a mesma fonte. Note-se, por exemplo, o caso de uma docente universitária catedrática que construiu a sua carreira com base em artigos publicados: "Ao mudar de identidade, a carreira acaba. Já a uma mulher, cuja profissão seja a de empregada doméstica, este problema não se coloca".
O mito da culpa da mulher ainda existe
Segundo a directora da UMAR portuguesa, outro dos perigos da associação da crise a este tipo de violência é o facto de contribuir para "manter o mito de que a mulher é responsável pelo crime". Além disso, a investigadora sublinha que, de 2008 para o ano passado, morreram menos 17 mulheres nas mãos dos companheiros "e a crise não diminuiu de um ano para o outro". Segundo o Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR, em 2008, registaram-se 46 vítimas. Morreram 29, no ano transacto.
"Estamos a melhorar", diz, apesar da semana sangrenta que passou, com três mulheres mortas a tiro e à facada. "Hoje temos a sensação de haver mais homicídios, porque há mais atenção dos média para estes casos e há mais campanhas de prevenção. Na realidade, há menos homicídios".
Maria José Magalhães acredita ainda que os números estão abaixo dos reais, porque "há famílias que não querem ver as suas vítimas nesta estatística". Um cruel pedaço de papel com nomes que nos rodeiam todos os dias.

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